Como as secas afetam sapos, rãs e pererecas no Brasil e no mundo
O artigo foi escrito pelos professores Carlos A. Navas, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e Rafael P. Bovo, doutor em Ciências Biológicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e publicado na plataforma de divulgação científica The Conversation Brasil
Com a intensificação do aquecimento global e a alteração do uso do solo, a aridez está aumentando em diversas partes do mundo. Esse aumento e a intensificação de secas representam uma ameaça crescente para a vida de muitas espécies em todo o planeta.
Entre os grupos animais mais vulneráveis estão os anfíbios anuros — sapos, rãs e pererecas —, que normalmente enfrentam desafios associados à baixa umidade, dada a dependência da sua história natural em habitats úmidos. Os anfíbios anuros estão sendo extintos tanto pela perda de habitat quanto pelas mudanças climáticas, que agravam outros processos de degradação ambiental.
E quais seriam as consequências da diminuição da umidade e de uma eventual escassez de água para esses anfíbios? As épocas tipicamente mais úmidas continuarão a ser suficientes para a sua reprodução?
Para responder a essas perguntas, nossa equipe de pesquisadores combinou várias metodologias em um estudo recente publicado na Nature Climate Change. Utilizando mapeamento espacial, meta-análises e modelagem biofísica, nossa pesquisa avaliou a exposição dos anuros ao aumento da aridez e à intensificação das secas de acordo com cenários climáticos futuros de aumento moderado e alto de emissão de gases estufa.
E essa aridização não é homogênea pelo globo terrestre. No Brasil, como nosso estudo apontou, seu impacto deve ser sentido especialmente na Amazônia e Mata Atlântica, que estão sob grande risco de aumento dos eventos de seca e concentram uma alta diversidade de anuros.
Os anuros e a seca
Com raras exceções, os anuros — que compõem 88% de todos os anfíbios — são sensíveis às condições secas devido à sua pele permeável, que os torna suscetíveis à rápida desidratação. Em regiões mais áridas, os anuros podem chegar a perder água por evaporação em taxas até duas vezes maiores do que atualmente. A progressão da aridização, portanto, pode comprometer a sobrevivência de anfíbios vivendo em regiões cada vez mais secas.
Entretanto, a sobrevivência, por si só, não é a única coisa que importa. Para manterem populações estáveis, esses anfíbios precisam realizar atividades vitais como procurar alimento e se reproduzir, o que por vezes envolve se deslocar para locais adequados. Essas atividades podem ficar comprometidas pelo calor e pela falta de água. É possível que espécies reduzam suas atividades durante condições adversas e, para os anuros, a redução do tempo em que podem estar ativos tem implicações graves.
Sob condições mais quentes e áridas, há menos tempo disponível para procurar alimento, encontrar parceiros reprodutivos e migrar para ambientes menos hostis. Assim, a viabilidade dessas espécies fica comprometida pelos impactos na alimentação, reprodução e sobrevivência dos indivíduos.
A sensibilidade à perda de água, contudo, varia entre as espécies. Alguns anuros apresentam características fisiológicas e comportamentais que reduzem a exposição às temperaturas mais altas e à seca. Alguns conseguem diminuir a exposição direta da pele ao ambiente seco usando posturas corporais específicas ou mesmo se abrigando em esconderijos. Outros produzem secreções que, pelo seu caráter impermeável, ajudam a manter a pele úmida.
Diante dessa realidade, é fundamental identificar quais espécies de anuros estão em maior risco, e em quais regiões o impacto das mudanças climáticas seria mais crítico. A partir dessas informações, estratégias de conservação podem ser implementadas para mitigar os danos e preservar essas espécies.
Estudo dos efeitos da seca e do calor
Em nosso estudo, inicialmente realizamos um mapeamento das áreas habitadas por essas espécies no mundo e, em seguida, filtramos as espécies sobre as quais existia informação adequada sobre taxas de desidratação. Com isso, criamos uma primeira base de dados com diversos elementos, incluindo a fisiologia do balanço (perda e ganho) de água.
A construção dessa base de dados foi um grande desafio. Mas, uma vez criada, ela nos permitiu analisar todos os dados em conjunto para avaliar as taxas de perda de água por evaporação em diferentes espécies de anuros, tentando a mais ampla distribuição geográfica.
Foi assim que identificamos quais grupos de anuros são mais sensíveis à desidratação rápida, considerando suas diferenças evolutivas e adaptações fisiológicas e comportamentais.
A seguir, tais informações foram sobrepostas a uma segunda base de dados, essa relativa à previsão de aumentos de aridez e de eventos de seca, considerando cenários com diferentes graus de aquecimento climático (com aumento de 2°C e 4°C).
Utilizamos simulações biofísicas baseadas em limites fisiológicos para estimar o tempo potencial de atividade dos anuros em diferentes cenários, testando se o efeito combinado de seca e calor restringe mais o período de atividade do que cada fator isoladamente.
O futuro da biodiversidade global de anuros
Os resultados da pesquisa indicam cenários preocupantes: entre 6% e 33% dos habitats de anuros poderão se tornar mais áridos até o final deste século, com até 36% dessas áreas sujeitas a eventos de seca mais intensos, longos e frequentes.
As simulações apontam ainda que a combinação de secas e aumento de temperatura pode reduzir o tempo de atividade dos anuros pela metade, comparado à redução de atividade em cenários de apenas aquecimento isolado. Dado que a grande maioria dos anuros possui atividade sazonal, não sabemos a magnitude de tal estresse para esses animais.
Nosso estudo, portanto, permite identificar alguns ambientes que poderiam receber atenção prioritária em termos de áreas para a conservação da anurofauna. Nessas regiões, pode por exemplo ser necessária a implementação de medidas para manter a umidade dos habitats naturais ou até mesmo a criação de pontos de água artificiais que garantam espaços adequados para a reprodução dessas espécies em períodos críticos.
Os resultados da pesquisa também fornecem um modelo que pode ser utilizado para avaliar a vulnerabilidade de outros animais que dependem de ambientes úmidos e enfrentarão desafios semelhantes com as mudanças climáticas.
Embora a situação atual seja alarmante, algumas espécies podem modificar certos aspectos do seu comportamento e fisiologia. Há os ajustes individuais, que por definição começam e terminam nos próprios indivíduos. Mesmo com limitações, esses ajustes podem reduzir a exposição em momentos mais críticos do ambiente, como os comportamentos mais reclusivos e o aumento da resistência da pele à desidratação.
Já as mudanças adaptativas dizem respeito ao potencial de uma população mudar sua fisiologia e comportamento mediante evolução biológica. Este fenômeno, associado a várias gerações, definiria outras possibilidades de ajuste – evolutivo, no caso – contra o dessecamento.
Estamos desenvolvendo estudos para conhecer o potencial evolutivo dessas adaptações. O que as pesquisas, até então, já nos mostram é a urgência de ações de conservação para preservar esses pequenos mas essenciais habitantes dos ecossistemas terrestres.
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