Ossos encontrados na Inglaterra revelam passado de violência e canibalismo
Milhares de ossos humanos esquartejados foram encontrados em um poço profundo no sudoeste da Inglaterra, revelando aos arqueólogos um sombrio capítulo da pré-história britânica ocorrido durante a Idade do Bronze Inicial.
A análise de mais de 3.000 ossos sugere que agressores não identificados mataram violentamente pelo menos 37 homens, mulheres e crianças antes de esquartejar e canibalizar suas vítimas entre 2210 e 2010 a.C. em um local chamado Charterhouse Warren, localizado em Somerset, na Inglaterra. Em seguida, eles jogaram os restos dos corpos em um poço natural de 15 metros de profundidade, ligado a um sistema de cavernas.
A descoberta macabra representa o maior exemplo de violência interpessoal registrado neste período na Grã-Bretanha, segundo os autores do estudo que descreve as descobertas, publicado no domingo (15) na revista Antiquity.
Os ossos são evidências raras e diretas que apontam para um ciclo de violência em um período da Idade do Bronze Inicial que os especialistas consideravam ser amplamente pacífico na Grã-Bretanha. A maioria das centenas de esqueletos humanos recuperados de 2500 a 1500 a.C. no país geralmente não continha evidências de brutalidade, disseram os autores do estudo.
“Na verdade, encontramos mais evidências de lesões em esqueletos datados do período Neolítico (10.000 a.C. a 2.200 a.C.) na Grã-Bretanha do que da Idade do Bronze Inicial, então Charterhouse Warren se destaca como algo muito incomum”, disse o autor principal do estudo, Rick Schulting, professor de arqueologia científica e pré-histórica da Universidade de Oxford, em um comunicado. “Isso pinta uma imagem consideravelmente mais sombria do período do que muitos esperariam.”
Os pesquisadores acreditam que a intenção por trás do tratamento extremo dos restos das vítimas era desumanizá-las como vingança após alguma ofensa grave. Mas tentar determinar o motivo exato de atacantes desconhecidos durante um período antes da existência de documentos escritos na região está se mostrando difícil.
Descobrindo um lugar macabro
As escavações ocorreram no poço de Charterhouse Warren, que faz parte de um platô de calcário, nas décadas de 1970 e 1980 como parte de um esforço para entender melhor o sistema de cavernas subterrâneo. Lá, os pesquisadores desenterraram pilhas de ossos humanos enterrados, misturados com ossos de gado, que contavam a história de violência em massa atingindo uma comunidade antiga.
Vários estudos sobre o local e seu conteúdo froam feitos desde sua descoberta. Mas a descoberta chamou a atenção de Schulting em 2016 graças à sua colega e coautora do estudo, Dra. Louise Loe, chefe dos Serviços de Enterro do Patrimônio da Oxford Archaeology, que escava e analisa esqueletos humanos de sítios arqueológicos. Loe havia estudado os restos mortais e sabia que Schulting estava interessado em documentar evidências de violência pré-histórica.
“Examinamos parte do material juntos e rapidamente ficou claro que a extensão das modificações nos ossos estava muito além do que qualquer um de nós já tinha visto”, disse Schulting. “Então o projeto se desenvolveu para contar a história do local.”
Uma análise dos ossos revelou que muitos dos crânios mostravam impactos fatais de trauma contundente, mas a violência não terminou aí. Numerosas marcas de corte cobrindo os ossos e fraturas no momento ou próximo à morte mostraram que as cabeças, braços, pés e pernas das vítimas haviam sido removidos de seus corpos usando ferramentas de pedra. Também havia evidências para mostrar que seus escalpos e pele haviam sido removidos, assim como algumas cabeças com mandíbulas inferiores removidas e possivelmente línguas.
“Além disso, um pequeno número de pequenos ossos das mãos e dos pés exibem fraturas por esmagamento de osso que são consistentes com os molares planos de onívoros, incluindo humanos, em vez das perfurações mais afiadas causadas por carnívoros”, escreveram os autores no estudo, observando que as partes do corpo foram enterradas rapidamente após serem esquartejadas e canibalizadas, tornando o consumo por animais altamente improvável.
A análise dos ossos também mostrou que quase todas as vítimas eram locais da área, sugerindo que os atacantes invadiram a comunidade para realizar seus atos brutais. Além disso, a maneira extrema como os restos foram manipulados vai além do que Schulting e seus colegas viram em restos de animais antigos que foram esquartejados.
“A coisa mais surpreendente é a extensão do esquartejamento dos corpos”, disse Schulting. “Eles foram mortos com golpes na cabeça e depois sistematicamente desmembrados, descarnados, com ossos completamente despedaçados.”
Os pesquisadores acreditam que os ossos são todos de um único evento. Mas, dado que existem diferentes camadas de material encontradas dentro do poço, os restos de animais e humanos podem ter sido depositados “ao longo de décadas e até de um século”, segundo o estudo.
“O local em si pode ser o denominador comum; o poço natural e o grande sistema de cavernas subjacente convidam a comparações com um portal para o submundo”, escreveram os autores do estudo.
Mas a maior questão é por que essa comunidade foi brutalizada em primeiro lugar. Para entender as razões, a equipe analisou eventos violentos similares ao longo do tempo.
Uma história de violência
Para contexto, os pesquisadores observaram o sítio paleolítico próximo de Gough’s Cave em Cheddar Gorge, apenas 3 quilômetros a oeste. Lá, escavações anteriores revelaram seis indivíduos cujos ossos haviam sido desmembrados e retalhados, incluindo possíveis marcas de mordidas humanas em ossos das mãos, pés e costelas.
Mas não há evidências de que as pessoas que os canibalizaram realmente mataram suas vítimas, sugerindo que o canibalismo seria na verdade uma forma de ritual funerário, disseram os autores do estudo.
Pesquisadores encontraram evidências de guerra com arcos e flechas em sítios da Idade do Bronze, e existem evidências do Neolítico Inicial, cerca de 1.500 anos antes de Charterhouse, quando armas como espadas começaram a aparecer no registro histórico, disse Schulting.
Mas as vítimas de Charterhouse Warren não mostraram sinais de resistência, sugerindo que uma parte substancial da comunidade foi pega de surpresa ou mantida em cativeiro e massacrada, e que a forma como foram tratados depois foi muito diferente do ritual. Existem alguns exemplos limitados de vítimas de violência sendo enterradas, como um jovem encontrado em uma vala em Stonehenge que foi atingido várias vezes por flechas, segundo os autores do estudo.
Os pesquisadores não acreditam que as pessoas foram mortas como alimento devido à fome, dado a abundante quantidade de ossos de gado encontrados misturados com os ossos humanos. Em vez disso, os autores do estudo acreditam que o canibalismo pode ter sido uma forma extrema de desumanizar as vítimas, “diferenciando” os mortos, ou comendo sua carne e misturando seus ossos com ossos de gado como uma forma de comparar as vítimas a animais.
Inovações em armamento, como punhais, sugerem que a violência interpessoal estava ocorrendo na época na Grã-Bretanha do início da Idade do Bronze, disse Barry Molloy, professor associado na escola de arqueologia da University College Dublin.
Inimigos podiam ser considerados “os outros”. “Pessoas tão distantes de seu grupo que a violência extrema contra eles se tornou aceitável”, disse Molloy, que não participou do estudo.
Mudanças populacionais na Grã-Bretanha nos séculos que cercam o evento sugerem que uma excepcional diferenciação estava acontecendo à medida que novos grupos assumiam partes da Grã-Bretanha, disse Molloy. “Até que ponto as pessoas na Europa pré-histórica estavam dispostas a desumanizar e brutalizar o grupo inimigo está registrado de maneira bem clara [em Charterhouse Warren]”, disse ele.
Mas o que poderia ter necessitado um ato tão dramático? Os autores do estudo não acreditam que os atacantes estavam lutando pelo controle de recursos no local, e as mudanças climáticas não pareciam ter impacto nos conflitos na Grã-Bretanha na época. Embora seja impossível conhecer a ancestralidade dos atacantes, não há evidências que sugiram um confronto de comunidades com diferentes ancestralidades ou etnias.
Uma forma extrema de vingança
Compreender as motivações na pré-história antes dos registros escritos existirem na Grã-Bretanha é incrivelmente desafiador, disse Schulting. Mas o grande número de vítimas significa que deve ter havido um número ainda maior de agressores, disse ele.
A análise de DNA dos ossos está em andamento para determinar o quão próximas as vítimas eram relacionadas, e a equipe de pesquisa também pretende estudar os ossos de animais no futuro, disse Schulting. E há evidências nos dentes de duas das crianças vítimas de que elas tinham peste, com base em pesquisas anteriores, embora não esteja claro como isso pode ter sido relacionado ao episódio violento.
“Possivelmente isso foi visto como vingança por alguma transgressão”, disse Schulting. “Atos violentos como esses podem surgir em um clima de raiva e medo — há evidências de que alguns indivíduos tinham a peste, o que pode ter contribuído para um sentimento de medo e incerteza. As tensões podem ter se acumulado a partir de começos relativamente inofensivos, como roubo, acusações de bruxaria e assim por diante, e então saído do controle.”
Molloy disse que, embora a teoria de um único massacre seja convincente, é mais assustador pensar que esse fenômeno ocorreu em múltiplas ocasiões, possivelmente normalizando o canibalismo.
“Às vezes, um único local pode mudar radicalmente nossas percepções, e acredito que Charterhouse tem o potencial para fazer exatamente isso”, disse Schulting. “A violência extrema vista aqui provavelmente não foi um incidente isolado. Haveria repercussões, já que os parentes e amigos das vítimas buscariam vingança, e isso poderia ter levado a ciclos de violência na região.”
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