A telona ainda está aqui: Público volta às salas e…
Quem gosta do escurinho do cinema tem razões de sobra para ficar feliz. O saudável hábito de ver filmes no conforto das salas de exibição renasceu no Brasil após um período desafiador imposto pela pandemia de covid-19 e pela crescente concorrência dos serviços de streaming. A recuperação foi impulsionada por uma combinação de fatores, incluindo a qualidade dos filmes lançados, estratégias de distribuição inovadoras e a resiliência do circuito exibidor. Os longas Ainda Estou Aqui e O Auto da Compadecida 2 surgiram como catalisadores desse renascimento, atraindo um público diversificado e reacendendo o interesse pela experiência cinematográfica coletiva.
De acordo com dados compilados pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), 125 milhões de espectadores frequentaram as salas de cinema no Brasil em 2024, gerando uma receita de 2,5 bilhões de reais. Esse número representa um crescimento expressivo em relação a 2023, quando 114 milhões de pessoas foram ao cinema, resultando em 2,2 bilhões de reais em faturamento — um aumento de cerca de 10% tanto no público quanto na arrecadação. A recuperação do setor se deve a uma combinação de motivos, como produções de sucesso, políticas de incentivo e a expansão da infraestrutura, com o número de salas no país subindo de 3 481, em novembro de 2024, para 3 509, em janeiro de 2025.
Um dos fatores-chave dessa retomada foi a oferta de filmes de alta qualidade e diversificados, capazes de atender a diferentes gostos e interesses do público. Rodrigo Saturnino — que foi diretor-geral da Sony Pictures no Brasil de 1991 a 2018 e, antes, trabalhou na Embrafilme —, atualmente diretor do portal Filme B, enfatiza a importância do conteúdo. “O que manda é o filme”, diz. “Se tiver bom filme, tudo se resolve. Se não tiver, não adianta promoção, não adianta ser de graça. Sem um bom filme, o público simplesmente não vai.” Saturnino também ressalta que a produção internacional, especialmente a americana, sofreu um impacto significativo com a pandemia e as greves de roteiristas em Hollywood. Essa lacuna, no entanto, abriu espaço para que o cinema brasileiro ganhasse espaço no mercado e passasse a ser um chamariz para as salas de exibição.
Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e O Auto da Compadecida 2, sequência da adaptação da clássica peça de Ariano Suassuna, emergiram como pontos fora da curva nesse movimento. Adhemar Oliveira, exibidor experiente que administra treze salas distribuídas por São Paulo, Belo Horizonte e Salvador, destaca que o longa de Salles, uma adaptação do livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, tocou o país todo, atraindo pessoas que não costumam assistir a filmes brasileiros. “Senti isso, porque não foi só aqui na Rua Augusta, em São Paulo, ou em Belo Horizonte ou em Salvador”, diz Oliveira. “Foi no país inteiro.” A narrativa emocionou o público, com um pano de fundo político e o drama da família Paiva em meio à ditadura militar.
Só no ano passado, o filme protagonizado por Fernanda Torres, no papel da matriarca Eunice Paiva, atraiu quase 3 milhões de pessoas aos cinemas brasileiros e faturou 64 milhões de reais. O longa, que foi indicado ao Bafta e ao Oscar, ainda está em exibição, ultrapassando quatro meses de tela, com uma audiência consistente e demonstrando o poder do boca a boca. Além disso, conquistou reconhecimento internacional, o que impulsionou ainda mais seu sucesso. O Auto da Compadecida 2, por sua vez, atraiu 1,3 milhão de espectadores com sua comédia que mantém elementos da obra de Ariano Suassuna. O filme consolidou o sucesso do cinema brasileiro no ano passado, demonstrando que é possível produzir filmes de qualidade que agradem tanto ao público quanto à crítica especializada.
No cenário internacional, também houve surpresas. Divertida Mente 2, sequência do sucesso da Pixar, teve seu desempenho amplificado por diversos fatores, entre eles o streaming. Rodrigo Saturnino acredita que a grande audiência do primeiro filme nas plataformas digitais ajudou a reconectar o público familiar com as salas de cinema. Ele destaca que, há um ano, ninguém previa que fenômeno semelhante pudesse ocorrer. A animação atraiu espectadores de todas as idades, de 8 a 80 anos, e alcançou um feito impressionante. “O filme terminou com mais de 20 milhões de ingressos vendidos no Brasil, um número que, se você me perguntasse há um ano, nem mesmo eu, com toda a minha experiência em distribuição, imaginaria. Foi sucesso escandaloso.”
Além da qualidade dos filmes, a recuperação do cinema como opção de diversão foi impulsionada por seu caráter social. Oliveira, exibidor com décadas de experiência no setor, destaca que o cinema é um “ato social”, um espaço onde as pessoas se reúnem com amigos, familiares ou parceiros para compartilhar momentos e emoções. Para que essa vivência seja completa, é essencial que as salas ofereçam tecnologia de ponta, segurança e conforto. Nos últimos anos, o Brasil modernizou seu circuito exibidor, com a expansão dos multiplex — como Cinemark, Cinesystem, UCI e outros — e a digitalização das salas, garantindo ao público som e imagem de alta qualidade e assentos mais confortáveis.

O parque atual de 3 509 salas em funcionamento no Brasil inclui novas unidades em municípios do interior e periferias dos grandes centros. No entanto, para garantir a sobrevivência desses espaços a longo prazo, Oliveira acredita que é necessário ir além da simples venda de ingressos. “Se você criar algo além do cinema, oferecendo novas possibilidades de monetização para o empreendimento, a viabilidade melhora”, afirma o empresário da exibição.
As redes sociais têm desempenhado papel crucial na promoção dos filmes. Segundo Saturnino, o boca a boca virtual transformou a maneira como o público interage com o cinema, com opiniões e avaliações sendo compartilhadas instantaneamente. “Antigamente, nós escondíamos o filme, não mostrávamos para quase ninguém”, diz. “Quando lançava, a gente torcia para que se sustentasse nas salas por mais de duas semanas. Hoje, o filme entra na quinta-feira, às 14 horas, e quinze minutos depois já tem gente colocando opinião sobre o que achou nas redes sociais.”

Os primeiros resultados de 2025 indicam a continuidade da tendência positiva. Em janeiro, as vendas de ingressos cresceram 29% em comparação com o mesmo período do ano anterior, com produções brasileiras respondendo por 33% do mercado. Apesar do cenário otimista, o setor ainda enfrenta desafios significativos. A concorrência com serviços de streaming demanda constante inovação e investimento em qualidade. Profissionais do setor defendem a criação de ambientes que ofereçam experiências além da exibição dos filmes, e também a manutenção de políticas públicas de incentivo à produção e à distribuição de conteúdo nacional.
As principais distribuidoras do país, incluindo Paris Filmes, O2 Play, Paramount e Warner, entre outras, já anunciaram uma robusta programação de lançamentos nacionais e internacionais para 2025, sinalizando confiança na continuidade da onda de crescimento do setor. A retomada do cinema demonstra que, mesmo em um cenário digital cada vez mais ostensivo, existe espaço para a experiência única que apenas as salas de cinema podem proporcionar. O desafio agora é manter a sétima arte em evidência, equilibrando qualidade artística e inovação para consolidar o cinema como um pilar essencial da cultura brasileira.
Publicado em VEJA, fevereiro de 2025, edição VEJA Negócios nº 11