Arte-ativismo no DF: movimento criativo muda vidas por meio da cultura
Renascimento dos sonhos que podem se concretizar na realidade.
O amor enquanto ferramenta de transformação.
Ao acordar tenho certeza que a vida me dá mais uma oportunidade de fazer diferente.
Essas palavras, carregadas de esperança, são da primeira poesia publicada por Favelinha, um jovem de 22 anos que, após passar pelo sistema socioeducativo do Distrito Federal, tornou-se professor no Poesia nas Quebradas. O projeto, que utiliza a poesia como um veículo de expressão e transformação social, proporciona um espaço onde vozes marginalizadas podem ser ouvidas e a arte se torna uma forma de resistência e empoderamento.
Foi em 2015 que, impulsionada pela sensação de não pertencimento em relação aos projetos de extensão do campus de Planaltina da Universidade de Brasília (UnB), Ravena Carmo, de 34 anos, pedagoga e mestranda na UnB, sentiu-se provocada a criar um novo espaço de atuação. Assim, o que inicialmente era apenas uma proposta, rapidamente se transformou no coletivo Poesia nas Quebradas, que rompeu os muros da academia e adentrou as periferias.
As histórias de Favelinha e do Poesia nas Quebradas são resultado de um movimento que tem ganhado força nos centros urbanos: o arte-ativismo. Como o próprio nome sugere, o conceito une o potencial transgressor e estético da arte a projetos sociais que buscam mudar a realidade das pessoas: sejam elas artistas ou espectadores.
“Arte-ativismo é a combinação da expressão artística com o propósito de promover mudança social ou política”, explica a professora Daniela Fávaro, do Departamento de Desenho Industrial da Universidade de Brasília (UnB).
Diferentes iniciativas no Distrito Federal incorporam os princípios do arte-ativismo. O Sesc+Cultura, por exemplo, além de trazer ações culturais para os brasilienses, oferece gratuitamente espaços para a realização dos espetáculos. Os artistas beneficiados precisam, em contrapartida, oferecer atividades sociais, como oficinas ou outras atividades formativas.
“O ativismo utiliza a arte como uma forma de engajamento social, permite que questões importantes sejam expressas de maneira criativa, impactante e transformadora”, avalia Leonardo Hernandes, gerente de cultura do SESC-DF.
“Quando falamos de cultura como motor econômico, estamos nos referindo tanto à geração de emprego quanto à criação de oportunidade de negócios em diversos setores, como turismo e comércio. A economia local é ativada. Todo um setor de bares, restaurantes, motoristas de aplicativos, todos eles se beneficiam pelos eventos”
Leonardo Hernandes
Em regiões onde o acesso a oportunidades formais de emprego e educação é limitado, o arte-ativismo, além de denunciar desigualdades, pode gerar novas oportunidades. Extensão do Poesia nas Quebradas, o Empreendedorismo de Quebrada tem como objetivo promover a autonomia financeira e o empoderamento de jovens periféricos e mulheres de Planaltina por meio de duas iniciativas: o Quebrada Gastronômica e o Empodera Quebrada.
O primeiro valoriza a gastronomia afetiva, especialmente aquela voltada a mulheres que desejam vender seus produtos em eventos culturais, como batalhas de rimas e saraus. Essa iniciativa não apenas promove a culinária local, mas também cria um espaço de visibilidade e fortalecimento para essas mulheres, permitindo o compartilhamento de receitas e histórias através da comida.”
Já o Empodera Quebrada foca em mulheres que foram vítimas de violência doméstica, oferecendo suporte e capacitação para que possam se reerguer através do empreendedorismo social. Esse projeto proporciona ferramentas e conhecimentos que as ajudam no desenvolvimento de negócios próprios, promovendo a recuperação emocional e a reconstrução da autoestima através da cultura hip-hop
“É uma tecnologia da periferia que usa da arte de empreender com os recursos disponíveis. E o projeto ajuda nessa ponte. A gente pega uma situação de dificuldade contando com aquilo que a pessoa tem de ferramenta e vê como isso pode ser transformado de forma criativa em um empreendimento”, explica Ravena.
Mercado social da cultura
O Coletivo Ori-gens é um grupo multicultural de artistas que nasceu de uma necessidade urgente: criar novas formas de pensar e executar projetos culturais no Distrito Federal. Liderado por artistas negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+ e com deficiência, o grupo se oficializou em 4 de fevereiro de 2023 e se destaca no fortalecimento da economia criativa nas regiões administrativas, na formação de novos profissionais e na promoção do direito à cultura e ao lazer nas periferias.
Segundo Bruna Nayara, produtora e integrante do coletivo, o objetivo principal é a democratização das artes: “O coletivo tem como foco a democratização das linguagens artísticas, através da proposição de projetos atuantes no combate ao racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, capacitismo e todas as formas de discriminação e preconceito”.
A principal iniciativa do coletivo foi o projeto Luz Negra, que teve suas duas primeiras edições em 2023 e 2024. O coletivo organizou uma oficina de iluminação cênica voltada para o público negro e periférico, com o objetivo de formar técnicos no campo da iluminação para o mercado de artes cênicas, promovendo a negritude e oferecendo oportunidades profissionais.
“As duas edições do projeto Luz Negra foram as primeiras atividades realizadas por nós, o que gerou importantes articulações e premiações, como o Prêmio Sesc + Cultura (2023) na categoria Inovação e Originalidade”, comenta Bruna.
Há ainda outras iniciativas de transformação social, como O Céu de Brincadeiras, que busca valorizar a infância nas periferias através do “brincar livre”, promovendo o desenvolvimento integral das crianças por meio da arte.
“Céu de Brincadeira surge como forma de multiplicar e fortalecer espaços de um brincar livre que valorize a infância por todas as suas potencialidades e expressões”, exemplifica Bruna.
A voz dos excluídos
Outro lado do arte-ativismo é comunicar discursos contra-hegemônicos na sociedade, ou, nas palavras da acadêmica Daniela Fávaro, funcionar como uma forma poderosa de resistência política e agente de transformação social. “Através de sua capacidade de sensibilizar, mobilizar e humanizar questões sociais complexas, a arte pode engajar pessoas que talvez não fossem alcançadas por outros meios tradicionais de protesto ou conscientização”, observa.
É o caso de Favelinha, personagem que abre essa reportagem. O jovem conheceu Ravena e o Poesia nas Quebradas ainda dentro do Sistema Socioeducativo, em 2019. Foi quando, de acordo com o artista, sua vida mudou e o interesse pela escrita e pela arte se aflorou.
“Esse projeto mudou a minha vida. A forma de escrever, de pensar, de ensinar, de aprender, meu jeito de me vestir, a minha postura. Só positividade, porque entre todas as chances que eu tive, essa é a que eu escolhi levar para minha vida”, declara Favelinha, cujo nome de batismo é Edilson do Rosário.
A arte, neste contexto, surge como um caminho de esperança para jovens em situação de vulnerabilidade, tornando-se uma ferramenta estratégica para enfrentar problemas como trabalho infantil e envolvimento de adolescentes no tráfico de drogas. “A poesia e o hip-hop desempenham um papel fundamental na transformação social, oferecendo uma plataforma poderosa para dar voz a realidades invisibilizadas”, analisa Ravena.
Os livros publicados nos últimos anos – Poesia nas Quebradas v.1 (2018) e Quebrada Livre (2022) – são a concretização dos ideais criados por Ravena. São títulos que dão voz a autores periféricos, cujas histórias muitas vezes seriam silenciadas, desafiando estruturas sociais tradicionais.
“Cada obra publicada representa uma voz periférica que, de outra forma, seria silenciada ou invisibilizada pelas narrativas dominantes. Na nossa visão, essas publicações não só ampliam o espaço de fala e expressão dos autores marginalizados, mas também rompem com os paradigmas elitistas da literatura tradicional, que historicamente excluiu as histórias e experiências das periferias”, salienta Ravena.
De acordo com dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), publicados no Mapa das Desigualdades de 2022, o Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e os espaços culturais estão concentrados nas regiões centrais, como Plano Piloto, Sudoeste e Águas Claras, em detrimento das periferias, que também possuem uma rica e diversificada produção cultural.
Cidades como Sol Nascente/Pôr do Sol, Fercal, Itapoã, Estrutural e Varjão, já marginalizadas pela ausência de políticas públicas em áreas como saúde, saneamento e educação, enfrentam desafios adicionais no acesso à cultura. A escassez de transporte público nos finais de semana e as tarifas de lazer inacessíveis agravam a exclusão dessas comunidades.
Um novo horizonte
Eduarda de Souza, de 28 anos, empreendedora, produtora e ativista cultural, nascida e criada na comunidade Pombal, em Planaltina, atribui à escrita poética a ressignificação do ambiente de violência que sempre esteve presente em sua vida.
“Participar do Poesia me traz uma sensação de pertencimento e com certeza fortalece minha identidade. Durante toda minha infância e adolescência presenciei diversos crimes como homicídios e tráfico. O impacto das vivências com todo pessoal do projeto e de todas as pessoas que cruzam meu caminho nessa parceria tem grande contribuição no processo de construção da cidadã que sou e pretendo ser”, conta Eduarda.
“Quando eu peguei o livro em mãos e tive noção de que participei disso com outras pessoas que eu reconheço como pessoas importantes para mim, teve muito significado”
Eduarda de Souza
Para Favelinha não foi diferente. Ele descreve a experiência de ter sua poesia publicada em um livro como um “sonho realizado”. “A primeira emoção que eu tive foi de conquista, de acreditar em mim mesmo, porque às vezes a gente se sente lá embaixo, mas quando outra pessoa pega um livro para ler e tem uma poesia sua e ela vem te agradecer pelo que você escreveu, significa que foi mais um sonho realizado de ajudar o próximo através da escrita”.
Arte-ativismo contra a transfobia
Parte central da cultura urbana, mesmo que por vezes vítima de preconceito, o grafite uniu seus traços ao combate à transfobia. Os coletivos Grafita Trans, liderado por Klaus Antônio, e o TransCrew, a primeira crew de grafiteires trans do DF, liderada por Diadorim Silva, usam a arte como forma de expressão e conscientização.
Klaus Antônio Miranda, ou Kaus Total, de 24 anos, é grafiteiro, agente cultural e turismólogo. Ele explica que o Grafita Trans nasceu da necessidade de repensar a presença de pessoas LGBTQIAP+ no turismo e, mais amplamente, na sociedade. “Eu percebo que existe uma falta muito grande de materiais sobre isso, e percebo que o turismo, assim como praticamente todas as áreas, acaba carregando muita transfobia estrutural”, diz.
Inquieto com os estudos que empreendeu e se sentindo isolado como pessoa trans no circuito de grafite do DF, Klaus decidiu agir: “Eu resolvi fazer alguma coisa que fosse contribuir para mudar esse cenário.”
Dessa mistura de ativismo e arte, nasceu o Grafita Trans, um projeto que combina as três áreas de atuação de Klaus: turismo, socioeducação e grafite, com objetivo de, nas palavras do criador, desafiar as barreiras estruturais e transformar a cidade a partir da arte.
Klaus acredita que a arte urbana, especialmente o grafite e o picho, sempre foram ferramentas de resistência e demarcação de território para grupos marginalizados. Ele aponta que a arte trans no grafite tem um papel de afirmação de que esses corpos existem na cidade, ocupando espaços que muitas vezes lhes são negados.
“A minha arte sempre foi ativista… até porque para ela não ser, eu teria que não ter as vivências que eu tenho”
Kaus Total
Fundada em 2017, o TransCrew nasceu de uma oficina realizada no Ambulatório Trans do DF, como parte das celebrações do Dia da Visibilidade Trans em janeiro. Desde então, o grupo tem se dedicado a grafitar pela cidade, levando representatividade visual. “Os principais temas que a gente busca transmitir incluem a inclusão de corpos trans em locais das cidades que as pessoas se vejam, se identifiquem”, argumenta Diadorim.
A TransCrew utiliza cores vibrantes e personagens em seus murais, muitas vezes representando corpos trans de formas heróicas ou fantásticas. Essa escolha surgiu como uma forma de normalizar essas identidades e desmistificar a transgeneridade para a sociedade.
Diadorim conclui que esse processo é parte do impacto transformador do grafite: “Corpos trans já são políticos por si só. Ao colocar, no meu próprio muro, esses corpos e personagens supercoloridos, crio um veículo de transformação social”.
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