Denúncia feita ao MPF diz que CNU excluiu negros não retintos de cotas
O Ministério Público Federal (MPF) recebeu denúncia que aponta que um membro da cúpula do Ministério da Gestão e Inovação (MGI) teria orientado, de forma deliberada, que as bancas de heteroidentificação – método usado para definir a raça social de uma pessoa – excluíssem os candidatos negros não retintos do sistema de cotas no Concurso Nacional Unificado. A medida vai contra a Lei de Cotas. O ministério, responsável pelo concurso, nega o fato e a banca organizadora não se manifestou.
A denúncia entrou no sistema do MPF na semana passada e, na segunda-feira (27/1), foi distribuída ao procurador federal Nicolao Dino, da área de Direitos do Cidadão. O órgão informou ao Metrópoles a Cesgranrio, banca organizadora do certame, já foi oficiada, com prazo de cinco dias para dar informações sobre os fatos.
Em relação às políticas afirmativas, pessoas autodeclaradas negras não têm vantagem sobre pessoas autodeclaradas pardas, visto que ambas são consideradas parte da população negra. O Estatuto da Igualdade Racial define a população negra como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo IBGE. Essa definição também é usada na Lei nº 12.990/2014.
O Metrópoles conversou com candidatos que tiveram a solicitação de cotas raciais negadas pela banca Cesgranrio, escolhida pelo MGI como responsável pelo certame. Dentre eles, pessoas que haviam sido enquadradas no sistema de cotas em concursos anteriores, inclusive promovidos pela mesma banca.
Irregularidades na etapa de heteroidentificação apontadas por candidatos entrevistados:
- “Não enquadrado”: aqueles que tiveram as cotas negadas apenas receberam como resposta a afirmação “não enquadrado”, tanto na decisão preliminar quanto na decisão após o recurso. Segundo a lei, todo ato público que nega um direito deve apresentar um motivo, o que não acontece nesse caso.
- Processo de avaliação: o processo teria sido rápido e impessoal. De acordo com relatos, a avaliação também foi traumática. Uma das pessoas ouvidas pelo Metrópoles afirma que o método usado se assemelhou a ser fichado em uma delegacia de polícia.
- Avaliadores: alguns candidatos relatam que houve pouca transparência em relação à capacitação dos avaliadores como pessoas capazes de julgar se alguém é ou não negro. As bancas ainda não teriam sido diversificadas, com a grande maioria dos avaliadores sendo brancos.
- Recurso: os canditados que foram “não enquadrados” e tentaram recorrer contra decisão da banca afirmam que a plataforma do CNU disponibilizou um espaço para argumentação com caracteres limitados. Além disso, não seria possível adicionar fotos e vídeos no espaço.
Entre os 2,11 milhões de inscritos que concorrem as 6.640 vagas do certame, 415.496 se autodeclararam pardos e pretos e concorrem a vagas reservadas às cotas raciais.
“Cresci sendo negra”
“Cresci sendo negra e essa é a minha identidade”, afirma Milena Lopes dos Reis, que teve cotas raciais negada no CNU. “Eu sou negra. Desde o meu nascimento vivencio a realidade de uma mulher negra, nascida na Bahia. Ser eliminada dessa forma me trouxe a sensação de que toda a minha história de vida foi reduzida a nada. Eu me olho no espelho e questiono a minha identidade. Isso dói demais.” Milena é pedagoga e utilizou o sistema de cotas durante toda a graduação na universidade.
Heteroidentificação durou “30 segundos”
Sílvia Katherine Pacheco Teixeira, outra participante do CNU, conta que essa foi a primeira vez que teve as cotas negadas. Ela recorda como foi a avaliação de heteroidentificação do certame.
“Me deram uma folha de papel A4 escrito em modo horizontal o número de inscrição e meu nome. Depois me chamaram individualmente para uma sala onde estavam 7 pessoas. Me pediram para ficar em pé dentro de um quadrado demarcado com fita crepe branca e com a folha de papel em frente ao peito. Havia uma luz branca intensa na minha direção. O fotógrafo foi o único que falou comigo. Me pediu pra ler meu nome e meu número de inscrição. E depois me mandou sair sala, coisa de 30 segundos. Ou menos.”
“Ora, eu sou um homem branco… é sério isso?!”
José Francisco de Carvalho afirma que foi aprovado em 10 procedimentos de heteroidentificação anteriores, em bancas diversas, para diferentes cargos. Porém, com o CNU foi diferente. A começar pelo tratamento dos avaliadores que, de acordo com José “sempre são muito simpáticos e acolhedores”.
“A banca do concurso do CNU visivelmente excluiu os pardos do conjunto populacional negro, estabelecendo critérios totalmente subjetivos para justificar sua avaliação e ainda sem motivar o que levou cada candidato a não ser enquadrado como negro ou pardo”, reflete José. “O que está ocorrendo no CNU é uma irregularidade sem precedente, uma verdadeira injustiça com a população negra.”
![Foto colorida de José Francisco de Carvalho - Metrópoles](https://uploads.metroimg.com/wp-content/uploads/2025/01/23144550/Cotas-CNU-2-600x400.jpg)
José, que tem 40 anos, se diz à disposição para realizar “qualquer análise dermatológica”. “Ora, eu sou um homem branco… é sério isso?! De muitos procedimentos dos quais já participei, sempre fui enquadrado como negro. Esta é a primeira vez que isto ocorre.”
“O branco sabe quem não é branco”
O bacharelado em direito Octavio Deiroz Neto relembra episódios de racismo sofridos durante toda a vida. “Eu cresci tendo que me submeter a comentários e piadas racistas. Eu alisava meu cabelo, com produto forte, porque o branco sabe quem não é branco. Eu não sou lido como branco pelas pessoas brancas, porque eu não sou. Sou uma pessoa parda”, relata Octavio.
“Eu sempre soube, racialmente, onde eu estava inserido. Quando eu era mais novo tinha vergonha da minha cor, do meu cabelo, dos meus traços. Hoje em dia eu tenho orgulho, mas por muito tempo não foi assim”. Apesar de conviver com as cicatrizes do preconceito, Octavio foi “não enquadrado” para cotas.
O mesmo aconteceu com Isabelle Rocha Nobre. A advogada diz se sentir impotente, já que “alguém tem o poder de dizer qual é a sua raça e negar toda a sua tragetória. “Fui lida socialmente como negra toda a minha vida. Isso perpassa toda a minha tragetória, porque eu sofro racismo diariamente.”
O que é heteroidentificação?
De acordo com o documento “Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a heteroidentificação é um dos métodos usados para definir o pertencimento de indivíduos a grupos raciais. A identificação da raça, para fins de políticas públicas, deve se basear na raça social, ou seja, como as pessoas são vistas e tratadas na sociedade.
Objetivos da heteroidentificação:
- Assegurar que as políticas de ação afirmativa alcancem aqueles que são socialmente reconhecidos como negros e pardos e sofrem discriminação.
- Validar a autodeclaração de um indivíduo.
- Replicar o olhar da sociedade para identificar se um candidato que se autodeclarou negro é socialmente visto como tal.
E os pardos?
Segundo o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, para aqueles que se autodeclaram pardos, deve ser analisado se o candidato é potencialmente vítima de preconceito no cotidiano e se é visto socialmente como negro.
“Em alguns casos, é recomendável que o(a) magistrado(a) convoque o candidato para uma entrevista pessoal ou por videoconferência para uma análise mais precisa, pois o documento oficial ou foto digitalizada podem dificultar a análise fenotípica”, descreve o documento. “[…] O(a) magistrado(a) eleitoral deve analisar se o candidato autodeclarado pardo encontraria resistência para ser contratado por uma empresa devido à sua tonalidade de pele e se receberia tratamento diferenciado em eventos sociais ou corporativos devido à sua condição de afrodescendente”.
O diz o MGI?
O Metrópoles entrou em contato com o Ministério da Gestão e Inovação (MGI) e com a banca Cesgranrio, responsável pelo certame e questionou sobre a denúncia recebida pelo MPF, que afirma que um membro da cúpula do ministério decidiu, de forma deliberada, excluir os candidatos negros não retintos do sistema de cotas. O MGI afirmou desconhecer o caso e não ter recebido notificação do MPF. O ministério ainda negou qualquer tipo de interferência de servidores na condução do procedimento de heteroidentificação do CPNU.
De acordo com o MGI, as Comissões de Heteroidentificação foram organizadas pela banca responsável pelo certame, a Cesgranrio. Até a publicação desta reportagem, a Cesgranrio não respondeu às várias tentativas de contato do Metrópoles. O espaço segue aberto.
Confira abaixo as explicações do MGI:
Nota Do Ministério Da Gestã… by Carlos Estênio Brasilino