Esquerda está presa em torre de marfim, diz cientista político Yascha Mounk
ANA LUIZA ALBUQUERQUE
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Conhecido por pesquisar a ascensão de líderes populistas e a crise da democracia liberal, o cientista político germano-americano Yascha Mounk aponta falhas no comportamento da esquerda ao lidar com esses fenômenos.
Em entrevista por videoconferência à reportagem, Mounk defende que a esquerda está presa em uma torre de marfim, que passou a se ver como parte do establishment e que deveria recuperar suas raízes como defensora da liberdade de expressão.
Ex-colunista da Folha de S.Paulo, ele argumenta que a regulação das redes sociais deveria ser limitada, por acreditar que não cabe aos governos ou às empresas de tecnologia decidir quais visões devem ser censuradas. “Embora países da Europa e da América Latina tenham adotado formas bastante extremas de censura, eles não conseguiram fazer desaparecer as ideias que esperam censurar”, diz.
PERGUNTA – Bolsonaristas ficaram muito animados com a vitória de Donald Trump. O quanto populistas de direita com tendências autoritárias fortalecem uns aos outros?
YASCHA MOUNK – O Brasil e os Estados Unidos são, em alguns aspectos, sociedades bastante semelhantes. Por isso, acho que o fato de alguém como Trump vencer pela segunda vez também deve atualizar a probabilidade de alguém da linha de Bolsonaro ser eleito no Brasil.
Acho que a parte mais importante é a informação que nos dá sobre a natureza atual das sociedades democráticas ocidentais. Há também a influência política direta. O fato de que o presidente dos Estados Unidos e um dos homens mais ricos do mundo, Elon Musk, possam estar ajudando a impulsionar essas forças políticas no Brasil. Isso possibilita que Bolsonaro ou Marine Le Pen, na França, digam: “Nosso relacionamento com os Estados Unidos irá melhorar se eu for eleito, em vez de nos tornarmos um pária internacional como resultado da minha eleição”.
P – Trump disse que os Estados Unidos não precisam do Brasil. Isso também sinaliza que Bolsonaro e seus aliados não são tão importantes para ele?
YM – Bem, a única pessoa que é importante para Donald Trump é Donald Trump. Seu critério para determinar de quem ele gosta é quem gosta dele. Em suas negociações com o Brasil ou com outros países, Trump dirá: “Estou feliz em trabalhar com qualquer pessoa, desde que você reconheça que eu sou o chefe”. Não acho que ele tenha pensado muito sobre Lula ou Bolsonaro. Ele diz, claro, eu me dou bem com Lula, eu me dou bem com qualquer um, desde que ele me dê o que eu quero.
P – A vitória de Trump é um alerta para Lula, considerando-se as próximas eleições?
YM – Esse estilo de política [populismo] se tornou uma das forças dominantes em praticamente todas as democracias do mundo. Mas as forças moderadas também mantêm um lugar muito poderoso. Podemos esperar uma concorrência bastante acirrada entre elas.
O que eu entendo, não acompanhando de perto a política brasileira, é que Lula, neste momento, é o favorito para vencer a reeleição. Mas ele certamente tem vulnerabilidades, desde sua idade até o fato de o Brasil ser um país muito polarizado.
P – Ao longo dos anos, os democratas tentaram de tudo para derrotar Trump, trabalhando por seu impeachment e para que as investigações contra ele avançassem. Por que todas as estratégias falharam?
YM – Bem, você está certa e errada. Eu diria que os democratas tentaram todas as estratégias exceto se olhar no espelho e tentar adotar posições populares. De certa forma, Trump tem sido muito mais implacável e ágil ao lidar com suas fraquezas. Assim, quando percebeu que o aborto era um perigo para ele, prometeu que não assinaria uma lei federal proibindo o procedimento. Os democratas não fizeram tanto para cobrir suas vulnerabilidades em questões como imigração e a participação de mulheres trans em esportes competitivos ou outras áreas em que são profundamente impopulares.
P – Qual o primeiro passo para derrotar Trump?
YM – Eu diria que é evitar os erros que os democratas cometeram em 2016. Aceitar que Trump foi legitimamente eleito, evitar afirmações enganosas sobre as maneiras pelas quais ele é perigoso, concentrar-se nos abusos reais de poder, que serão muitos. Temo que os democratas já estejam caindo na armadilha de não fazer isso. O governo tomou tantas medidas genuinamente impopulares ou potencialmente perigosas nos primeiros dez dias, mas o maior debate nas redes sociais foi a respeito de Elon Musk ter feito ou não uma saudação a Hitler.
P – Eu me pergunto se os democratas estão perdidos da mesma forma que a esquerda brasileira por vezes parece perdida diante da direita bolsonarista.
YM – Eles estão muito perdidos. Eu sempre penso em um famoso livro de Thomas Kuhn sobre a estrutura das revoluções científicas. Ele diz que, quando um determinado paradigma científico deixa de explicar o mundo, mesmo os cientistas que começam a reconhecer isso não são capazes de abandonar essa estrutura, porque eles não têm alternativa. É preciso inventar uma nova estrutura para que eles estejam dispostos a abandonar a antiga.
Se você não tem uma nova estrutura, você dobra a aposta nas coisas fáceis. Você chama Trump de Hitler, de Mussolini. Você volta a usar formas de política simbólica que reúnem sua base, agradam seus doadores e são exigidas por seus funcionários mais jovens, mas não faz nada para expandir sua coalizão ou mesmo para manter ao seu lado as pessoas que historicamente fizeram parte dela.
P – Por que os grandes empresários da tecnologia têm se alinhado a líderes como Trump?
YM – Primeiro, eles estão genuinamente irritados com as tentativas de censura do governo. Qualquer pessoa que defenda a liberdade deveria ser mais cética em relação à visão dominante em grande parte da Europa e da América Latina. Eu me tornei bastante norte-americano em relação a isso. Não acho que os governos devam decidir o que posso dizer e ler online. E também não acho que os bilionários devam decidir. A única maneira de preservar isso é exigir de fato uma liberdade de expressão genuína e abrangente nessas plataformas.
P – O sr. é contra qualquer forma de regulação das redes?
YM – Precisamos de algumas formas de regulamentação para coisas como pornografia infantil e chantagem. Mas não deveria ser possível o governo dizer que “essa é uma visão política que consideramos ruim, ofensiva ou perigosa e, portanto, vamos exercer influência sobre essas empresas para forçá-las a retirar essas coisas do ar”. Acho que é muito ingênuo, principalmente em uma época em que as forças populistas são tão poderosas como agora, pensar que os governos estarão sempre, ou na maioria das vezes, ao lado dos tolerantes e dos progressistas.
P – A esquerda se acostumou a tentar remover uma ideia do debate em vez de disputar a opinião pública?
YM – Sim, e acho que isso tem algo a ver com o fato de a esquerda ter ficado presa à mentalidade da torre de marfim. É fácil quando você está em um espaço como uma universidade, em que a esquerda tem sido dominante há muitas décadas, fazer apelos à autoridade porque você sabe que a pessoa em posição de autoridade concorda com você.
Embora países da Europa e da América Latina tenham adotado formas bastante extremas de censura, eles não conseguiram fazer desaparecer as ideias que esperam censurar.
A esquerda deveria recuperar suas raízes como defensora da liberdade de expressão. A triste verdade é que é sempre o establishment que quer impor limites ao discurso. Em muitos países, a esquerda começou a ser tentada por essa posição equivocada, que vai contra sua própria história e tradição, porque começou a se considerar como o establishment.
RAIO-X | YASCHA MOUNK, 42
Professor de relações internacionais na Universidade John Hopkins (EUA). PhD em governo pela Universidade Harvard (EUA). Autor de “O Povo contra a Democracia”, “O Grande Experimento” e “A Armadilha da Identidade”.