Saúde

Fim de manicômios judiciários esbarra em resistências, e 2.276 internos esperam por liberação


CONSTANÇA REZENDE E RAQUEL LOPES
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)

Josenildo da Silva tinha 35 anos quando uma briga com chutes e pedrada acabou resultando na morte de um amigo, em 2015. Viviam em situação de rua, no município de Palmeira, no Paraná. Diagnosticado com esquizofrenia, ele foi considerado inimputável pela Justiça -quando o réu não pode responder por seus atos.

Sem receber uma pena, mas uma medida de segurança, Josenildo foi encaminhado para um manicômio judiciário no Complexo Médico Penal do Paraná, onde ficou internado cerca de cinco anos. Desde fevereiro do ano passado, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tenta desativar essas instituições e encaminhar 2.276 internos para tratamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde), como maneira de cumprir a Lei Antimanicomial, de 2001.

A medida, no entanto, tem esbarrado na resistência de entidades médicas, que reclamam da segurança, e de estados e municípios, que alegam falta de infraestrutura para o acolhimento necessário. Muitas famílias também não aceitam receber essas pessoas de volta.

No caso de Josenildo, mesmo após ter seu alvará de soltura expedido pela Justiça em setembro de 2019, ele permaneceu no manicômio judiciário. Sua situação só mudou um ano e dois meses depois, quando a Defensoria Pública do estado conseguiu localizar um parente que se dispôs a acolhê-lo, o que permitiu que ele continuasse o tratamento pelo SUS.

“Um dos meus irmãos não me aceitava como sou, achava que eu era louco e que não deveria ir para a rua. Como queria viver uma vida normal, saí de casa e fui para o Rio Grande do Norte, onde cheguei a morar na rua novamente. Conheci um colega que me levou para a igreja e aluga uma casa para mim. Comecei a enxergar a vida novamente, tenho contato com a família e faço tratamento médico”, relata.

Manicômios judiciários abrigam pessoas com medida de segurança -elas cometeram crimes, mas por possuírem transtornos mentais não podem sofrer as penas cabíveis. Os casos variam de pessoas que cometeram homicídios até ocorrências menores, como furtos cometidos durante surtos.

Documentos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, apontam para uma série de irregularidades nesses ambientes asilares, como resultado de inspeções feitas por peritos de 2022 a 2024, no Distrito Federal, Mato Grosso e Paraná.

Os resultados mostram ausência de assistência terapêutica, superlotação, falta de produtos básicos de higiene e até prática de tortura. Em um desses espaços havia pacientes com contenção física, além de faixas amarradas em cadeiras e camas, e aplicação de medicação em doses diárias maiores do que as previstas em prontuário.

Os quartos costumam não ter janelas ou entrada de luminosidade natural. O acesso a ambiente externo fica a critério dos funcionários do local.

A resolução do CNJ determina que quem é inimputável não pode ser tratado em instituições de caráter asilar, como alas e enfermarias de unidades prisionais, comunidades terapêuticas, manicômios. A norma mudou o tratamento das pessoas com transtornos psiquiátricos que cometem crimes no Brasil, orientando o acompanhamento para a reinserção social, não em unidades isoladas.

Porém, passados dois prazos, estados e municípios não conseguem cumprir a norma e pedem mais prazo ao conselho. Só em São Paulo, há 970 pessoas nessas condições. Também há 260 casos de pessoas no Brasil que já possuem a medida de segurança extinta ou com alvará de soltura, mas continuam confinadas porque não são aceitas por suas famílias, e o Estado não oferece vagas de acolhimento na rede de saúde.

Há também resistência de setores da sociedade civil e da classe médica para cumprir a medida. Só no STF, há quatro ações que questionam a resolução. Elas começarão a ser julgadas no próximo dia 25. Todas estão sob a relatoria do ministro Edson Fachin, que já indicou posição favorável ao fim dos manicômios. As ações propostas pelos partidos Podemos e União Brasil argumentam que a resolução ameaça a segurança das famílias ao permitir a soltura de pessoas perigosas.

A Associação Brasileira de Psiquiatria argumenta que há leitos insuficientes nos hospitais gerais e nos demais serviços da Rede de Atenção Psicossocial. O Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) diz que a resolução trata de política pública de saúde e deveria ser regulamentada pela área.

Para o presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), César Eduardo Fernandes, a resolução impõe risco ao sistema de saúde porque esses pacientes têm necessidades especiais e periculosidade e não poderiam estar num ambulatório comum.

O Ministério da Saúde disse que adotou diversas medidas para fortalecer a Raps (Rede de Atenção Psicossocial), que deve atender esse público.

O coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ, juiz Luís Geraldo Lanfredi, afirma que o conselho não elegeu esse tema a seu gosto, mas para cumprir uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Ele acrescenta que a questão é complexa e não se resume a “estados que não cumpriram o prazo”, mas que estão se adaptando. “Caiu a ficha de todo mundo porque esse era um tema com um encontro marcado, e esse momento chegou. O CNJ está tendo uma imensa sensibilidade de encaminhar isso para resolver”, disse.

O conselho considera o estado de Goiás como um modelo que conseguiu acabar com manicômios judiciários, com a criação do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, em 2006. Nele, a mesma política aplicada à população é oferecida às pessoas submetidas a medidas de segurança, sem distinção no atendimento pelo fato de terem passado pelo processo penal.


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