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Lembrança de crise elétrica faz governo autorizar térmicas apesar de reservatórios ainda estáveis


PEDRO LOVISI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

O sufoco causado pela crise elétrica de 2021 fez o governo federal se adiantar, neste ano, e autorizar o acionamento de mais termelétricas pelo ONS (Operador Nacional do Sistema). A precaução, porém, pode aumentar o preço da energia, inclusive para as indústrias, que hoje consideram como exagerada a medida.

Na semana passada, o CMSE (Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico) aprovou a ampliação da contratação de térmicas a gás natural. Com isso, o ONS pode contratar a energia gerada pelas usinas Santa Cruz (RJ) e Linhares (ES) até novembro, ainda que elas não sejam as mais competitivas do país.

Essa contratação recebe o termo técnico de “fora da ordem do mérito”. Isso porque, em geral, o ONS contrata térmicas para suprir a demanda diária de eletricidade em determinados períodos do dia, a partir do preço da energia gerada pelas usinas do país.

Em dias normais, portanto, as usinas térmicas mais baratas são as primeiras a serem acionadas -mas com a autorização do governo isso não necessariamente será seguido.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse na semana passada que não há estimativa sobre quando essas usinas serão acionadas. Mas, uma vez autorizado, o ONS pode despachá-las assim que achar necessário.

Na prática, o Brasil já conta com energia elétrica proveniente de térmicas diariamente no SIN (Sistema Interligado Nacional), como é chamado o sistema de geração e transmissão de energia que conecta todo o país -com exceção de Roraima.

No último dia 3, por exemplo, quando o governo comunicou essa autorização, quase 14% da energia gerada veio de termelétricas, fonte suja de energia. As térmicas englobam menos de 10% da capacidade instalada do Brasil, que considera o volume de energia que todas as usinas, renováveis ou não, conseguem produzir no país.

Parte dessa energia é chamada por especialistas como “de base”, já que algumas térmicas selecionadas pelo ONS ficam acionadas durante todo o dia, gerando uma quantidade estável de energia. Assim, junto com as usinas nucleares, elas formam a base das curvas de geração do sistema.

Já em alguns momentos do dia, principalmente no início da noite, quando ocorre a queda acentuada da geração de energia solar, o ONS precisa acionar outra fonte para sustentar a entrega de eletricidade. Geralmente, essa função é atribuída às hidrelétricas, mas, principalmente quando os reservatórios não estão cheios, as térmicas são acionadas.

Esse movimento é chamado de “acionamento de ponta” por especialistas.

“A gente vem acionando térmicas de ponta desde setembro do ano passado, quando os reservatórios ainda estavam cheios. Isso porque, quando o sol se põe, o ONS tem que acionar outra usina para entrar no lugar da solar, e às vezes as hidrelétricas sozinhas não conseguem atender”, diz Guilherme Ramalho de Oliveira, sócio consultor da Ampere Consultoria.

Além disso, mesmo quando há água suficiente nos reservatórios, o ONS prefere acionar térmicas com um dia de antecedência para economizar água -esse adiantamento é devido ao tempo que a usina leva para atingir sua capacidade máxima. E é justamente nesse ponto que entram as críticas de quem não concorda com a atual autorização do acionamento de térmicas fora da ordem de mérito, considerado mais emergencial.

Em tese, não há uma norma que estabeleça a capacidade exata dos níveis de reservatórios para que o ONS peça autorização ao governo para usar térmicas fora da ordem de mérito. Em dezembro do ano passado, o operador divulgou um estudo com referências para esse acionamento. E, considerando apenas esse documento, não haveria razões para o acionamento das novas térmicas.

As bacias do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, responsável por 70% do SIN, ainda têm mais de 50% dos seus reservatórios cheios. E os subsistemas Sul, Nordeste e Norte também estão com a capacidade acima da média, sendo que o último encosta nos 80%.

De acordo com o estudo do ano passado do ONS, o acionamento de térmicas deveria se iniciar, neste período do ano, apenas se as bacias de Sudeste/Centro-Oeste estivessem com 37% do seu reservatório.

Nesse caso, avalia o órgão, seriam acionadas as térmicas com custo variável de até R$ 311,53 por MW/h -o custo atual de Linhares, cujo despacho foi autorizado neste mês, é de R$ 1.257.

Segundo as referências do próprio ONS, Linhares só seria acionada se os reservatórios estivessem no cenário mais crítico de todos. O estudo deixa claro, porém, que os custos visam apenas melhor entendimento das fronteiras entre os montantes de energia necessários e “não fazem parte do critério de definição destes montantes”.

Alguns especialistas evitam opinar sobre as tomadas de decisões do ONS, como essa. Na visão deles, o órgão é técnico e, se pediu autorização para despachar as novas térmicas, é porque seus modelos preveem ser necessário economizar água para o período seco de 2025. O acionamento de térmicas mais caras, dizem, pode ser devido à disponibilidade de combustível e à localização delas.

“Há, sim, necessidade. O ONS não pode olhar apenas o curto prazo; como planejador e cooperador, tem que olhar o período mais longo garantindo os preços e a garantia de segurança mais módicos possíveis”, diz Marisete Dadald Pereira, presidente da Abrage (Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica), que abrange operadores de hidrelétricas.

Mas é consenso que neste ano o governo federal tomou a decisão de forma antecipada. Em 2021, por exemplo, quando o Brasil enfrentou uma das maiores crises hídricas das últimas décadas, o governo liberou o uso excepcional de térmicas por seis meses em junho, quando os reservatórios de Sudeste/Centro-Oeste estavam com 30% de sua capacidade.

“Todo mundo ficou bem preocupado em 2021. Na época, ficou-se esperando a chuva que não veio e, então, precisou-se despachar tudo que é térmica, independentemente dos preços, o que tornou a conta de energia muito cara. E dessa vez, o governo está mais precavido”, afirma Rosana Santos, fundadora do Instituto E+ Transição Energética.

Essa antecipação incomoda a Abrace, associação que representa os 50 maiores consumidores industriais do país. Isso em parte porque o despacho de térmicas acarreta custos extras para o sistema, que são pagos inclusive por quem está no mercado livre de energia, como as grandes indústrias.

“Tem gente amplificando a sensação de crise para justificar a contratação de um grande volume de térmica na base que vai se mostrar muito caro no futuro”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Abrace. “Não gostamos do acionamento fora da ordem do mérito e entendemos que o modelo de preços precisa ser corrigido para evitar esse acionamento”, acrescenta.

Uma das alternativas poderia ser, por exemplo, o que especialistas chamam de resposta da demanda, quando grandes consumidores de energia fazem contratos remunerados com o ONS garantindo que reduzirão seus consumos em momentos estabelecidos pelo operador.

Nesses casos, a queda do consumo substituiria o acionamento de ponta das térmicas, custoso devido ao preço do combustível e à demora das usinas para ligarem e desligarem.

“A resposta da demanda não necessariamente diminui a produção da indústria, porque, se isso é avisado com antecedência, a empresa desloca sua produção para outro horário. Essa é uma estratégia superutilizada na Nova Zelândia, na Austrália e nos Estados Unidos”, diz Rosana.

Na última terça-feira (10), aliás, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) autorizou o ONS a fazer já neste ano leilões para contratar reduções temporárias de consumo de energia da grande indústria a prazos longos -hoje existem em curto prazo.


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