O craque de vinhos argentinos que jogou para escan…
Tango, Maradona (perdón, Messi) e Malbec formam a santíssima trindade de grandes símbolos argentinos. No campo dos vinhos, quase metade das uvas cultivadas no país são da variedade de origem francesa que se adaptou tremendamente bem em terras portenhas. Para quem produz por lá, é quase uma heresia tentar ir contra a corrente, mas é o que alguns vinicultores estão tentando fazer agora — e o resultado é surpreendente.
Um dos craques de vinhos argentinos que chutou a Malbec para escanteio foi Eduardo Soler, criador da vinícola Ver Sacrum, que há quinze anos produz vinhos com castas não convencionais em Mendoza. Ele explica a opção lembrando que nem sempre na história do país o domínio foi das uvas Malbec. “Antes da explosão da Malbec, há cerca de trinta anos, havia muitas outras variedades por lá”, contou ele à coluna AL VINO numa visita recente a São Paulo. No trabalho de recuperar essa tradição de maior diversidade, Soler tem conquistado admiração e mercados como Estados Unidos, Reino Unidos e Suécia, com seus vinhos leves e vibrantes.
A história começou com um impulso vindo de fora. Ex montanhista e esquiador profissional, Soler há vinte anos faz parte de um grupo de degustação às cegas que realiza encontros mensais. Em uma dessas reuniões, apareceu um Grenache (ou Garnacha) espanhol da Serra dos Gredos, uma coordilheira próxima a Toledo. O vinho era leve, de uma cor delicada, com a acidez que pedia o próximo gole, sutil, menos alcóolico, o extremo oposto do que estava no auge na Argentina naquele momento, os Malbecs pesados, amadeirados, muito extraídos e superpotentes. “Por que a Argentina não consegue produzir algo assim?”, pensou Soler.
A pergunta foi o ponto de partida para aquisição de terreno no belíssimo Vale do Uco, numa região a 1.200 metros de altitude, com vista para um paredão de rocha e uma montanha. Soler, com mesma leveza e sinceridade que seus vinhos têm, conta que foi um autodidata. “Fiz muito vinagre antes de começar a acertar”, reconhece. Mas quando acertou o resultado foi a tradução do que se espera hoje de um grande vinho: acidez que pede o próximo gole, leveza, frescor e personalidade.
NOTA ALTA DE ROBERT PARKER
Tive oportunidade de jantar com ele sua esposa, Emilia, uma advogada que também faz vinhos (em breve conto essa história), na Casa La Pastina, em São Paulo, onde apresentaram cinco rótulos que já estão no Brasil pelas mãos da World Wine, dentro os catorze que produz. O primeiro branco foi um blend de Viognier, Marsanne e Pedro Ximenez, que tem 10% do mosto amadurecido em carvalho sob véu de flor, que é uma camada de leveduras que se forma no topo do recipiente onde ele estiver fermentando, mesmo processo do Jerez Fino. O resultado é um vinho cremoso, vibrante em acidez, por isso muito gastronômico, e que recebeu 91 pontos do crítico americano americano Robert Parker.
Não foi à toa que o Garnacha me chamou muita atenção. A Ver Sacrum é a maior produtora dessa uva em Mendoza. Como resultado desse trabalho, surge um vinho para se tomar ligeiramente resfriado, o que é uma delícia nesses dias quentes. A bebida amadurece em ovos de concreto em contato com as borras, o que dá corpo e o que os ingleses chamam lindamente de “crispness”. Metade dele amadurece em barricas de carvalho e descansa mais oito meses na garrafa antes de ir para o mercado. Se você leitor desta coluna me permite uma sugestão, experimente harmonizar aquela sua carne grelhada com uma taça de um vinho deste estilo, no lugar do Malbec clássico do churrasco: garanto a você que chegará ao final do almoço mais leve e não empachado e sonolento. Sabe aqueles almoços que começam ao meio dia e às 4 da tarde a churrasqueira ainda tem brasa? Então, este é o vinho.
Todos os vinhos da Ver Sacrum são produzidos com leveduras indígenas ou seja, não usam fermentos químicos. São as leveduras naturais da fruta que conduzem a fermentação, como acontece com os pães de levain ou de fermentação natural, que já estamos habituados. A vinificação é feita com mínima intervenção, ou seja, os vinhos que “não têm maquiagem”, como explica Soler. “Nossa intenção é engarrafar a paisagem”, romantiza o vinicultor.
O último vinho que provamos na Casa La Pastina foi um blend das uvas Grenache, Syrah e Monastrel, o famoso corte GSM, muito usado na região do Vale do Rhône, na França. É a mesma receita que produz, por exemplo, o famosos Châteauneuf-du-Pape. Adepto da agricultura regenerativa, um modelo que, em linhas gerais, recupera o solo enquanto se produz, Soler plantou as três espécies de uvas juntas, misturadas, o que é pouco comum nas culturas convencionais. “As primeiras safras foram um problema, porque o tempo de brotação e colheita de cada cepa era muito diferente, o que foi uma catástrofe”, lembrou. “No entanto, com o passar do tempo, à medida que as raízes das plantas foram ficando mais profundas e se entrelaçando, elas passaram a ter ciclos iguais”, concluiu, com brilho nos olhos. Tenho que reconhecer, o resultado é mesmo pura poesia: um vinho mais encorpado, com fruta madura exuberante, mas com a sutileza que é assinatura da vinícola. E para quem não abre mão de uma medalhinha: levou 90 pontos Wine Spectator e 92 da revista Adega.
Harmonizada com a tendência mundial que pede vinhos menos alcóolicos e menos extraídos (sem cor e potência típicas de macerações mais pesadas), a Ver Sacrum vem ganhando mercado no exterior. Cerca de 90% da produção da vinícola, que é de cerca de 90 000 garrafas por safra, é totalmente destinada à exportação para onze países, entre eles, o Brasil.
Sorte nossa.