Os produtores mais tradicionais do mundo rendem-se…
Como em uma citação do filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004), “a novidade muitas vezes se apresenta como uma monstruosidade”. Foi assim, com um completo espanto que vi uma vizinha de mesa pedindo por um vinho sem álcool, há cerca de dois anos. Em outubro passado, estive anonimamente em alguns estandes de vinhos nacionais na ProWine, maior feira das Américas para profissionais da área, para degustar seus festejados rótulos zero álcool. Ainda bem que não me identifiquei. Assim, pude sair sem que percebessem meu total desagrado com o que provei. Boa parte desses rótulos eram sucos de uva gaseificados, feitos com uvas de espécie viti-vinífera, espécie que faz os vinhos secos e finos (como Moscatel e Cabernet Sauvignon). Os rótulos dessa safra zero álcool eram exageradamente doces, perfumados e, sinceramente, estranhos.
Então me pergunto: por que essas pessoas não pedem um suco ou até mesmo uma tubaína, se querem algo assim tão doce assim? A sommelière Flávia Maia me respondeu: porque o álcool tem um fator social que é insubstituível. Por isso, grávidas, pessoas por questões religiosas, quem está em algum tratamento ou simplesmente quer diminuir o álcool da rotina aderem e adoram esse tipo de bebida. A premiada dupla de sommelières Cássia Campos e Daniela Bravin concordam e vão além: “Não dá romantizar o consumo diário de álcool e esses rótulos agregam, trazem mais pessoas para o universo do vinho, sem segregar por qualquer que seja o motivo que impeça ou que faça que a se escolha não beber álcool”, me disse Daniela.
Cássia lembra que a cerveja, como sempre, saiu na frente, e hoje oferece ótimos exemplares zero álcool. “Inclusive, entre as artesanais, temos sempre uma IPA refrescante, que costumamos consumir em casa”, contou. O depoimento dela confirma o que a empresa americana dedicada à inteligência do consumo, Nielson, constatou: 93% dos consumidores de bebidas sem álcool são também bebedores de vinhos, cervejas, drinques convencionais. E se há demanda certamente haverá quem produza. Para se ter uma ideia, esse mercado já movimento meio bilhão de dólares nos Estados Unidos em 2024 e teve um crescimento de 31%, em um ano.
O DESASTRE DAS PRIMEIRAS SAFRAS
Se você pensa que essa tendência parece coisa de americano, a resposta é “non”. Na icônica Bordeaux, no noroeste da França, o impronunciável tornou-se realidade. Hoje a região é responsável por alguns bons exemplares sem álcool do mercado mundial. Um dos enólogos à frente desta revolução é Frédéric Brochet, criador da linha Moderato. Ele conta que, há poucos anos, o que faziam era realmente considerado um lixo, porque usavam sistema que destilava o vinho, o que levava embora o álcool e, por tabela, as demais propriedades do vinho. Hoje, o processo utilizado pelas melhores casas (sim, no plural) é a centrifugação, que mantém as propriedades organolépticas (cor, aroma e sabor) da bebida. Daniela Bravin, confirma. “Claro, se você tira o álcool, modifica a estrutura, a viscosidade, o vinho fica mais magro. Mas já degustei alguns que demoramos a perceber essa ausência”, garantiu ela.
No Chateau Clos de Bouard, próximo de Saint Emilion, em Bordeaux, um terço das vendas já é de vinho sem álcool. Quem deu início a essa nova empreitada na tradicional casa foi Coralie de Bouard. Em 2019, ela aceitou o desafio de produzir sem álcool para os proprietários do clube de futebol PSG. Na época, o patriarca da família torceu o nariz. Hoje, vive com a tacinha (sem álcool) na mão.
Para o enólogo Brochet, que está comandando essa revolução, a única maneira de não ver desaparecer a cultura de vinho é aceitando a bebida sem álcool. Segundo ele, os barris de carvalho um dia foram uma revolução, as rolhas outra, as variedades de uvas mais uma e agora esse tipo de produção pode salvar a indústria do vinho de desaparecer, inclusive enquanto cultura.
Como diz outro francês, Paul Valery, o que é a tradição senão uma evolução bem-sucedida.